quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Meias

 

Já se sentiu avulso na vida? 

Pareço estar em um balaio de meias, aos poucos todas a volta, vão se juntando e encontrando o par, e fica tudo certo, não importa se estão feias, velhas ou furadas, a condição de ter par faz delas, vamos dizer, felizes, úteis, com propósito. Já as que, “sobram”, podem ser lindas, novas, perfeitas, mas perdem a serventia, até o plural usual, “meias” fica estranho para se referir a elas. Ser par, é que faz delas meias, coisa esquisita. 

Será que já não é hora da revolução das meias? 

Poderíamos pra começar chama-las no singular. Elas são singulares, ficou melhor, mas, aí seria meia e não um inteiro singular. 

Talvez a revolução das meias passe por deixar de ter seu valor marcado pela serventia. Talvez a analogia com as meias fale mais da nossa necessidade de ocupar o lugar de necessário ou necessitado.

Pensando assim, me distancio das meias e passo a pensar que essa sensação de ser avulso na vida seja porque não conseguimos nos imaginar felizes, satisfeitos se não estivermos satisfazendo o desejo de alguém, mesmo que brigando por liberdade e independência, não sabemos direito onde colocar nosso desejo legitimo, aliás muitas vezes não sabemos nem como identifica-los. Se não tenho um par que me define, quem sou? 

Então saímos de cabeça baixa, feito meia sem par, em busca do par que nos complete e dê sentido na vida, deixando de lado a busca do que verdadeiramente seriam nossos contornos, angustias e desejos. Vamos lá calçar alguém, sem sabermos direito o que seria isso, ou a que preço. 

Quer saber, depois dessa conversa, não estou mais com vontade de ser meia, quero mesmo é ser inteira, topando a sensação incomoda de ser avulso, vamos ver onde vai dar! 

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Psicanálise, atendimento psicológico e planos de saúde

 

Vamos voltar um pouco no tempo. Quando Charcot, no século XIX, interessou-se pela clínica da histeria, descobriu que algo naqueles sintomas escapava ao saber médico da época. Apesar de toda controvérsia que causou, exatamente por denunciar um “não saber”, inaugurou os conhecimentos acerca da psique humana que Sigmund Freud desenvolveu com genialidade. Muitos outros teóricos vieram desde então, alguns refutando outros acatando, mas todos tentando desvendar os enigmas que envolvem a trajetória do homem animal ao homem sujeito da cultura.

Uma nova profissão: tratar dos sofrimentos psíquicos. Freud em sua experiência de ensaio e erro chegou até o desenvolvimento da técnica psicanalítica. A psicanálise independente da teoria abordada tem como base a transferência.

A psicologia por outro lado, enquanto prática voltada para a clínica, desenvolveu muitas outras abordagens com aportes diferentes e portanto com técnicas com objetivos e princípios particulares.

Tanto a psicanálise quanto a psicologia clínica tem como objeto de trabalho e estudo a psique humana e carrega em seu bojo os limites dos enigmas inerentes a ela. Assim, compreender um determinado sintoma, jamais será compreender o sujeito ou mesmos todos os sujeitos acometidos por ele. Diferente da medicina, onde a doença pode ser catalogada e medicada, os sintomas psíquicos mesmo que catalogados, jamais podem ser tratados de forma uniforme. Uma visita a uma clínica psiquiátrica será suficiente para constatar que a própria “loucura” é uma forma singular de existência.

Século XXI, novos tempos, depois de sermos submetidos a uma avalanche de conhecimentos tecnológicos no século anterior, um misto de sensação de domínio do tempo e portanto da nossa condição de sujeito limitado e condenado a finitude, nos invadiu. Os profissionais como psicólogos e psicanalistas tem agora a função de adequar esse psiquismo submetido e mergulhado nos conflitos próprios da sua natureza, a nova condição humana: a unificação pela rápida “cura” e conquista do que é belo, perfeito e funcional.

Os profissionais mais experientes compreendem esse processo e trabalham em sua clínica, essa busca como um sintoma a ser entendido como uma nova defesa do afastamento da dor de ser humano.

O trabalho do terapeuta, diferente do médico, não é administrar remédios. Não é aconselhar, educar, indicar, ou oferecer saídas práticas para o sujeito, mas oferecer sua escuta e técnica para que ele encontre seu próprio caminho dentro da sua história. Compreender um sintoma não é suficiente para o sujeito abandoná-lo ou “resolve-lo”, mas abre espaço para novas configurações que inevitavelmente levarão a compreensão dele como parte de um todo. Cada abordagem teórica tem seus instrumentos nela fundamentados para tratar do sofrimento humano diante das dores psíquicas.

No entanto, quando os planos de saúde passam a oferecer atendimento psicológico com a força de uma lei, abrem espaço para o uso perverso desta função.

De um lado temos o psicólogo que ao receber um número significativo de pacientes, trabalha em linha de produção, respondendo a demanda do convênio, algo muito mais confortável que percorrer os caminhos sinuosos da psique humana que exige estudo, supervisão e constante contato com as próprias questões.

Cumpre com as sessões estabelecidas, totalmente na contramão do estabelecimento do vínculo terapêutico, mantém o convênio entre eles como anteparo.  Com a fachada de que estaria respeitando suas regras, esconde-se do contato com os limites de sua formação teórica e técnica, inevitáveis a qualquer profissional da área, quando do contato com a demanda de um novo paciente.

No entanto, para ele, não se trata de um novo paciente, tendo em vista que o paciente é do “convênio” ele é sempre conhecido enquanto tal. As questões acerca do singular e, portanto assustador daquela relação não pode acontecer nesta forma tão “fast” e generalizada de contato.

Do outro lado o paciente protegido pela guia de encaminhamento, que chega em posição de quem tem a determinação de um “Outro” para que o terapeuta cumpra sua função: manter a saúde mental em dia.   Nessa posição não pode dirigir ao psicólogo a sua angustia, mas suas defesas em relação a ela. Com  poucas sessões com duração as vezes de quinze minutos,  quem seria  “insano” a ponto de vincular-se? Uma situação ambígua, pois ao mesmo tempo que o protege do vínculo o deixa desamparado e sem resposta para a angústia que mantém guardada em segredo.

Então poderíamos dizer que estamos no mundo da fantasia. A lei da agência Nacional de Saúde, com aval do Conselho Federal de Psicologia, faz de conta que protege os direitos dos pacientes, o convênio faz de conta que cumpre, o psicólogo faz de conta que trata protegendo-se do seu não saber dizendo: “fazemos o que podemos” e os pacientes “passam” pelo psicólogo.  Alguns tendo ainda mais reforçadas suas defesas, outros mais prejudicados têm suas defesas abaladas e seguem ainda mais desestruturados, outros mais defendidos mantêm-se descrentes nesse tipo de trabalho dizendo “isso não serve para nada”.

 

terça-feira, 16 de agosto de 2022

Existe uma função “vóterna”?

 



        A psicanálise de modo geral define como função, a representação da  presença do outro dentro do psiquismo que funda e sustenta o sujeito a partir de um lugar definido.

        Assim, a função materna é o representante da mãe internalizadas que engloba as características necessárias e esperadas da pessoa que acolhe, ampara e protege a criança.

        No nascimento nosso primeiro contato com esse outro, mãe, é fundamental para existência e sobrevivência física e psíquica. Nascemos em situação de total dependência, sem uma mãe que sustente fisicamente “para dar mamar” e cuidar e psiquicamente “para dar afeto” não é possível a continuidade da vida.

         Aos poucos interiorizamos essa mãe, ou seja, ela passa a morar dentro de nós e fala de acolhimento, aceitação, receptividade, doação, ligação afetiva, mas também remete as situações vividas de desamparo, dor de amar e rejeição.

        Essa experiência de acolhimento bem como de contato com desamparo inevitável, se constitui como nossa primeira marca inconsciente, é quando essa mãe passa aos poucos a existir dentro do sujeito temos a introjeção da “função materna”.

        Uma mãe suficientemente boa como diz o psicanalista Winnicott, ao manifestar seus limites permite que o bebê reconheça sua existência descolada da mãe. Quando a mamada falta o bebê tem contato com o seu corpo, sua dor, portanto seus limites e pode se ver como um ser separado da mãe, irá encontrar ou desenvolver seus próprios recursos.

        Chamamos de função paterna qualquer evento que venha a possibilitar o contato com o limite do amor oceânico entre mãe e filho. Assim, a própria falta da mamada a princípio tem essa função. Mas com o tempo esta função precisa ser personifica em alguém amado que coloque limites para proteger e para impedir que o sujeito se esvaia no outro. Alguém que represente uma lei que serve para todos e todas as situações.

        A principio a relação com esta figura acalma mesmo que traga algum desconforto, pois vem “podar” o sujeito. Aos poucos vamos introjetando, ou seja, tendo este pai dentro de nós, que dependendo de cada um vai ser mais rígido ou mais flexível, a modulação de sua presença dá o tom de nossa rigidez ou displicência conosco e com os outros.

        Duas funções primordiais na constituição do sujeito, a materna e a paterna. Como estamos falando de representação psíquica, são funções que não precisam ser necessariamente frutos da presença e ação da mãe ou pai biológico. Quando vemos nos relatos dos capítulos anteriores, avôs que ocupam o lugar da mãe ou pai, diria que eles os substituíram abdicando de seus lugares de avôs, mas de que lugar é esse que falamos?      

        Existiria uma função vóterna? a  presença dos avós faria diferença na constituição do sujeito? Traria prejuízos sua ausência ou falha, assim como em relação à função materna e paterna? Como se daria a introjeção desta figura? Que representação teria?

        Para tanto precisamos recuperar o conceito de castração e complexo de Édipo, formulado por S. Freud e amplamente utilizado e discutido por todos os outros grandes estudiosos de psicanálise. Poderíamos dizer que os fundamentos da teoria psicanalítica só puderam ser consolidados a partir do momento que em Freud pode conceber a sexualidade infantil, tirando a criança do lugar de anjo assexuado, vítima passiva e deu-lhe um lugar ativo nos romances familiares, como ele chamou.

        As vivências dos primeiros meses de vida são fundamentais para que o bebê reconheça o contorno de seu corpo, físico e psíquico que a princípio é continuidade do corpo da mãe.

        No entanto, Winnicott postula que para tanto a mãe precisa regredir à condição do bebê que foi para poder entender e amparar seu filho a partir de um lugar comum. Diz ainda que neste momento de necessidade extremas do bebê, ao viver essa regressão  pode unir-se de forma completa a ele oferecendo-lhe o que chamou de holding, que: “Protege da agressão fisiológica, leva em conta a sensibilidade cutânea do lactente – tacto, temperatura, sensibilidade auditiva, sensibilidade visual, sensibilidade à queda (ação da gravidade) e a falta de conhecimento do lactente da existência de qualquer coisa que não seja ele mesmo. Inclui a rotina completa do cuidado dia e noite, e não é o mesmo que com dois lactentes, porque é parte do lactante, e dois lactentes nunca são iguais. Segue também as mudanças instantâneas do dia-a-dia que fazem parte do crescimento e do desenvolvimento do lactente, tanto físico como psicológico.”  (Winnicott, 1979/1983, p.48)

        Para tanto a função do pai neste momento é cuidar e oferecer suportes que a liberem para tal entrega. 

Winnicott diz: O pai tem uma função também importante: "Pode ajudar a criar um espaço em que a mãe circule à vontade". (Winnicott, 1982, p.26)

        Nesta fase a presença do pai é fundamental assim como da avó materna para oferecer suporte e investimento afetivo para nova mãe, que se encontra regredida à condição de bebê, para poder aproximar-se desse novo ser, deixando, por um momento, de lado para tanto, seus próprios interesses e demandas. Esse é o amor incondicional de que tanto se fala, uma entrega total e irrestrita.

        Nessa hora se o pai assim como a avó materna aceitarem a proposta inconsciente de ocupar o lugar antes de responsabilidade dessa mulher como sujeito possibilitarão a entrega plena dessa mãe a seu bebê.

        Essa disponibilidade afetiva da nova mãe permite que a criança viva o seio, em sua fantasia, como continuidade do seu corpo oferecendo à mãe a experiência de completude fálica, onde nada falta.

        O corpo do bebê é libidinizado pelo contato físico com a mãe, a intimidade desse laço estabelecido nestes primeiros cuidados  desde  de higiene até a alimentação, marcam as partes do corpo. Assim, por exemplo, o contato da boca com o seio, determinará a boca como uma das primeiras zonas erogenas do futuro adulto.

        Esse prazer, advindo do afastamento da dor do desprazer da fome, frio e dor ganha um novo status. Mamar deixa de ser uma necessidade apenas física, passa a ser um ato de prazer e realização de desejo marcado no corpo físico, na boca, e no psiquismo, deixando um traço de memória no psiquismo.  

        O bebê passa a poder sonhar, alucinar, o momento da amamentação e cuidado como forma de suportar a ausência e encontrar prazer mesmo que o seio e os cuidados não estejam presentes no concreto. 

        Quando é chegada a hora do desmame ele entrará em contato com a dor da separação pela primeira vez.

        Segundo Piera Aulagnier, esse momento tem a força do que chamou de “violência da interpretação”, a mãe precipita um novo momento em seu bebê, momento esse fundamental para constituição psíquica do sujeito.

        No entanto para que essa mãe precipite essa nova experiência é preciso que suas figuras de suporte, o pai da criança e a avó materna, interfiram nessa relação simbiótica, devolvendo à mãe as responsabilidades com ela mesma, trazendo-a de volta para seu lugar de sujeito. Ou seja, recupere seus contornos, sem “ter” mais o bebê como sua continuidade e completude.

        Da parte do pai da criança, que vivenciou o prazer de amparar e cuidar de uma “mãe” talvez como forma de ressignificar antigos laços do menino que foi, com a própria mãe, ao deixar o lugar de apoio e suporte  sentirá falta de um lugar junto a essa mulher.

        Por um instante ocupará o lugar do terceiro excluído, mas se conseguir ter resolvido ou ressignificado o lugar de bom menino da mamãe, vai requisitar o retorno da mulher “castrada” sem a vivência de completude da gravidez e do nascimento. Uma crise será instalada para que possam encontrar-se a partir de seus desejos e faltas para tornarem se novamente um casal.

        Em relação à avó materna, um confronto, antigas mágoas retornam na retirada do suporte a condição regredida da mãe quando do nascimento do filho.

        Todas as questões relacionais não resolvidas entre mãe e filha virão à tona e sacudirão o laço.  Um acerto de contas importante para relação que deixará marcas, mas possibilitará a bebê-menina  se tornar  mulher-mãe e a mãe da mãe  tornar-se avó.

        O desprazer sentido neste momento acompanhado da vivência de desamparo despertada pela ausência da mãe que oferecia completude, “empurra” bebê e mães para novas descobertas, experiências e funções.

        Assim o contato com outra forma de alimentar-se apesar de causar tristeza nas duas mães é acompanhado da descoberta de outras formas de alimento e troca afetiva assim como no bebê que vive o desmame e a quebra da relação simbiótica.

        A criança por volta dos nove meses já é capaz de experimentar e reconhecer a ausência da mãe, mas pode suportá-la, festejando seu retorno. Não estamos mais no registro da relação simbiótica. Como conseqüência a criança internaliza a representação de seus próprios contornos e conseqüentemente da existência de um outro.

        O choro passa a ter outras características torna-se apenas um dos muitos instrumentos para chamar a atenção para suas faltas e dores bem como de sua existência. Gracinhas e atos reforçados pelos outros são o início de uma nova forma de comunicação e acesso ao mundo.  

        No período do primeiro ao segundo ano, grandes conquistas vão dando mais liberdade à criança, mas também lhe colocando em contato com os limites. Nesse momento tudo que leva a um “não” exerce atração como forma da criança conhecer e testar seus limites que definirão seus contornos e poderes.

        O acesso à linguagem e conquista do caminhar a conduzem diretamente a grande e dolorida verdade ele não é “sua majestade o bebê”.

        Da grande queda narcísica a busca desesperada de controlar o adulto que o retirou do trono na tentativa de retomada do poder, são apenas alguns meses, o controle dos esfíncteres coincide com esse momento.

         Assim, ao perceber o quanto o adulto quer que ele faça algo, como usar o pinico, descobre o controle que pode exercer a partir desta demanda. Pode corresponder ou não ao que esperam dele.

        Entre os quatro e cinco anos uma nova luta trava-se. Um mundo onde existem os que tem poder e os que não tem leva a criança a ora ter comportamentos de tirania ora de submissão e temor de perder o amor dos pais.

        Um embate que a leva, ao final, a transforma-se, entendendo sua condição de terceiro excluído na relação com os pais ao   ser abertamente apresentada ao pai como companheiro e objeto de desejo da mãe.

        Um novo conflito se instala. A criança resiste, assim como a sua mãe, muitas vezes, a permitir que esse outro entre definitivamente na relação.

        Cenas como a criança dormindo entre os pais são denunciadoras dessa resistência. Certa vez uma garotinha de quatro anos protestou: “Não é justo vocês dormirem juntos enquanto eu durmo sozinha em meu quarto”.   

        Será o vínculo do casal como homem e mulher e não como pais, que irá oferecer ferramentas para lidar com essa situação. A tal garotinha se confortaria se os pais pudessem dizer: “Quando você crescer e tiver um amor poderá dormir acompanhada como nós”.

        Mas se o pai não saiu da condição de menino ou a mãe de menina, se identificarão com sua garotinha a acolherão em sua cama.  

        Se os pais não deixaram a relação de suporte instalada como apoio à regressão materna, quando o bebê nasceu, não poderão mais ser um casal em detrimento do congelamento daquele momento que provavelmente infantilizará a relação. Não teremos mais homem e mulher, apenas pai e mãe. Inevitavelmente as dificuldades sexuais serão as primeiras a denunciar esta situação.

        A função “vóterna” teria um momento especifico privilegiado para instalar-se e assim como em relação ao casal, dependeria da elaboração do delicado momento do nascimento do bebê. Se mãe e filha puderem sair da condição da relação de uma menina-mãe com sua mãe-avó para uma relação entre mulheres.

        Nesse encontro, um embate! chegou à hora onde a mais velha cederá o lugar de mãe para a jovem mãe, validando esse desejo e autorizando-a para que seja inclusive uma mãe melhor que ela foi.  

        Se isto ocorrer haverá lugar para a relação da avó com seu neto (a), sendo esta relação descolada da relação com a filha, não ameaçará as competências ou poderes desta mãe, portanto a criança não será inconscientemente utilizada por uma delas ou ambas, como  corda em  cabo de guerra ou ser lenha na fogueira das vaidades.

        A nova avó para cumprir com esta sua nova função terá a difícil e triste tarefa de abdicar dos seus saberes de mãe para ocupar-se de novos saberes.

        Uma luta trava-se internamente dentro do imaginário desta mulher-mãe-avó, mais próxima do processo de luto. Experimenta a morte dentro dela da função de mãe que se tornou obsoleta e dispensável.   

        Uma passagem difícil de se realizar, principalmente tendo acabado de reviver com todas as emoções e cores o contato com seu bebê-mãe no nascimento do neto (a).

        Lembro-me de um comentário de minha mãe quando minha filha acabou de nascer e eu estava totalmente embevecida e mal conseguia ir ao banheiro, ela diz em tom de repreensão como há muitos anos eu não ouvia: “Esqueça um pouco desse bebê, vamos cuidar de você”. Levei um choque, como ela podia pedir uma coisa dessas, naquele momento o cuidado dela me agrediu, pois atacou minha vivência de continuidade com meu bebê, um corte necessário de uma mãe protegendo sua filhinha da entrega incondicional ao seu bebê, um pedido de retorno à relação mãe e filha do passado, imprescindível em um momento e totalmente desnecessária logo em seguida.

        É desse lugar de poder, agora vivenciado, que a mãe da mãe deverá abdicar para deixar que sua filha o ocupe do seu jeito e com seus recursos por mais que considere que seria mais fácil com sua ajuda.

        É como assistir uma criança apreendendo a vestir-se, uma tentação ir até ela e acabar com aquela angústia de pernas trocas e roupas enroladas. Mas a única forma capaz de ajudá-la a adquirir ferramentas importantes para lidar com seus desafios, é permitindo que ela exerça o papel que agora é dela por mais desajeitada e assustada que esteja e por vezes clame por ajuda.

        A relação com o filho ou filha passa por transformações ano após ano, até quando é chegada à hora de ele ou ela precisar ocupar a função de mãe ou pai solicitando de forma definitiva a desocupação deste lugar para que possam assumi-lo junto de seu bebê.

        Tornar-se desnecessária enquanto mãe é tarefa difícil e imprescindível para o surgimento de um novo lugar na relação com os filhos e os netos.

        Nesse processo de luto será preciso para esta mulher, despedir-se da maternidade e todas as suas mazelas, de todos os bebês que não teve e gostaria de ter tido, de tudo que gostaria de ter dado e não deu a seus filhos, perdoar-se pelos erros grosseiros e os bem intencionados que jamais poderão ser reparados, despedir-se dos acertos e conquistas vividos nessa milagrosa relação e constatar com tristeza que não  retornarão.

        Para o pai-avô, esse processo ocorre de forma mais branda, mas não menos importante. Sua garotinha no passado,  encantada por ele,  secretamente desejando dar-lhe de presente um filho, ao tê-lo, tornou-se mulher e mãe  destronando-o do posto de pai objeto de admiração e figura protetora. Seu garotinho, seu admirador  e rival, ao tornar-se homem e pai ocupará seu lugar junto a uma mulher e um filho, decretando a subida ao trono que ele ocupava.

        Após esta dura passagem, aposentados da função de pai e mãe, são tomados pela dor da perda acompanhada pelo vazio de seus dias.

        Como em toda perda vivida durante nossa história, será uma nova  oportunidade de ressignificação das relações edípicas, um reencontro com a vivência do passado, da infância e adolescência.

        Estar novamente no lugar do terceiro excluído, como nesses antigos e dolorosos momentos (infância e adolescência),  abrirá novamente a ferida primitiva da castração. Ou seja, as antigas dores advindas do anúncio de nossos limites poderão ser revividas e oferecerem novas configurações tão ou mais sofridas que no passado.

        Aos poucos os avós poderão sentir o desprazer de deixarem ir o que tanto amam para descobrir o prazer da independência e alivio ao isentarem-se das responsabilidades e pressões diárias internas e externas, em relação aos filhos e netos.

        Com esse desprendimento e liberdade  aproximar-se do neto(a) terá um colorido especial, um jeito lúdico e descompromissado, capaz de abrir espaços únicos no universo de ambos.

        A brincadeira torna-se coisa séria e nos encontros, não importa quantos sejam ou serão, os lugares da criança roubam a cena.

        Quem já viveu essa experiência sabe do prazer de virar novamente um menino ou menina entregue a um jogo qualquer que nos faz perder a noção de tempo. 

        Por um momento o adulto dentro de nós tranqüiliza-se e tranqüiliza a criança tanto a que nos habita quanto a que nos acompanha e nos guia por esses espaços inimagináveis.

        Relações raras, capazes de preencherem lacunas e de responderem a questionamentos fundamentais de forma branda e corriqueira. Pular corda, rolar no chão, jogar bola, não fazer nada, tudo tão bobo e tão importante.

        Num mundo onde as crianças ocupam papel de valorizado destaque e andam cada vez mais atarefadas, onde os pais estão muito ocupados com a formação e futuro de seus filhos,  é essencial que a criança tenha dentro dela uma figura que represente desprendimento, tranqüilidade e envolvimento com o lúdico e criativo.

        Serão recursos valiosos no futuro, capazes de abrir uma brecha naqueles momentos onde parece não haver mais saída. 


Trecho extraído do livro: Voternidade - ser avó, ser avô um doce desafio - Sonia Pires

REPETIR, REPETIR, REPETIR....

 



Nossa maior luta diária, é com os fantasmas que habitam nosso interior. Não se trata de estar tomado de algo maligno do qual deveríamos nos livrar, mas da força das marcas indeléveis deixadas como pegadas, em nós mesmos, que são muito mais presentes do que gostaríamos ou precisaríamos para viver em harmonia com esse mundão do lado de fora. Na verdade, a realidade externa nos coloca a todo momento em contato com o real, real esse que atravessa nossas entranhas e causa estranhamento e consequentemente, acorda e sacode esses nossos fantasmas.

Um filme antigo, “O feitiço do tempo”, ilustra o quanto a tarefa de fazer diferente, enfrentar a tentação diária de repetir seguindo as preciosas pegadas deixadas em nós, desde nossa primeira infância, exige determinação e uma grande dose de humildade e resignação. Vou explicar melhor.

 Diante das demandas da vida, sejam elas de ordem afetiva ou material, temos gravado em nós respostas defensivas que transformam o novo em velho e sagrado conhecido, para atender ao chamado mortal, de que nada mude, afastando o pulsar da vida, que é transformação e portanto, exige e impulsiona para mudança. 

Assim, uma situação nova e desconhecida ganha a roupagem do que já foi vivido, e a resposta a ser dada é a repetição, do já vivido. Em nome da estabilidade do já conhecido, desperdiçamos nossos dias, presos e amordaçados no passado.

Mas, quando se trata de psiquismo, não existe saída fácil. Essas mesmas marcas, que nos mantém presos ao passado, são tão importantes e fundamentais como o alicerce de uma construção.  Assim, poderíamos dizer que o grande desafio humano é aceitar a sua singularidade e limite diante de sua história, sem perder a oportunidade de utilizar cada novo dia para repaginar as marcas deixadas pelo passado. 

 

 

Relação de Simetria no amor


                 Uma relação de amor é antes de tudo uma experiência de vida que nos coloca diante de todos os nossos capítulos passados e sonhados, lembrados e esquecidos, provocando uma revolução na nossa história, nos ameaçando tanto quanto nos encantando.

         Vivemos preso no passado sonhando com um futuro, o encontro amoroso nos surpreende, nos avassala por nos colocar diante do presente, do “aqui e agora”, do real, com as vestes do amor primeiro do passado, não dá para planejar quando irá acontecer e se o fizer, estará diante do sofrimento de nunca alcançá-lo, próprio do nosso sentimento infantil de ser “avulso” diante de um mundo de casais. 

        Por outro lado, também não é possível escapar e se livrar do amor sem um grande sofrimento psíquico.

        O que coloca o relacionamento amoroso na qualidade de investimento privilegiado, é a nossa busca pela completude, de uma cumplicidade possível, que ao mesmo tempo em que é ansiada é temida.

        As brigas de casal são exemplos típicos, parecem bobos, à luz da razão, mas falam de questões afetivas profundas. Assim quando ouvimos um amante dizendo à sua amada que precisa de espaço, que não está se reconhecendo, vemos o temor de se perder no outro tão próprio de um momento em que um dia esteve envolvido lá trás na relação mãe-bebê. Mas, o encontro revela o quanto é prazeroso estar envolvido assim como a satisfação e angustia de estar diante de um outro tão amado e desejado.

         O amor nos desestabiliza mesmo quando ausente, pois quando estamos de coração vazio, a pulsão de vida reclama sua presença, para revivermos com os recursos psíquicos de que dispomos, nossa história, nos abrindo a possibilidade de reinventa-la e reescreve-la.

        Nessa viagem no presente que traz à tona aspectos regressivos quanto progressivos, buscamos sim a simbiose como na psicose tanto quanto a tememos. Podemos nos tornar nesse momento próximos do que vive o paranoico, assustados com a suspensão parcial da razão.

O ciúmes, o controle e aquelas coisas que jamais o sujeito se imaginou fazendo, roubam a cena e denunciam o quanto o investimento libidinal que está sendo evitado já aconteceu. Utilizamos de nossas defesas perversas como a recusa, o desafio e a sedução, quando revivemos  nossa “submissão” diante do eleito, reveladora de nossa dependência e desamparo, incapazes de correr o risco de conhecer e se fazer conhecido do amado.

         É comum vermos cenas do amado dizer: “Você é a pessoa mais importante da minha vida, sem você eu não poderei viver” para no momento seguinte simplesmente desaparecer, com a mesma naturalidade de “Don Juan”, mesmo não se tratando de uma estrutura perversa.

         O susto de se ver envolvido amorosamente, ao mesmo tempo que leva a satisfação tão ansiada do encontro, também ameaça, podendo despertar nossas defesas perversas transformando  desamparo em  desafio assim, seduzir quem me ameaça para provar que “tenho controle” sobre a situação,  recusando admitir o envolvimento.

        Se tivermos suporte psíquico interno para permanecermos investindo e permitindo investimento de libido, superamos o susto e  nos vemos diante da dor,  entramos em contato com o luto revivido do objeto amado perdido no passado, inevitavemente despertando Tanatos, a pulsão de morte, que anunciará os riscos e sofrimento que se seguirão ao investimento amoroso.       O medo de amar revela o quanto desejamos e estamos “condenados”  o medo é do tamanho do desejo.

        O que diferencia um amante de outro, não é apenas a capacidade de entrega, mas o quanto o sujeito que ama é capaz de dispor-se a entrega que inevitavelmente o fará sofrer, pois denuciará a todo momento tanto sua dependência e ameaça de desamparo, quanto a imperfeição e distanciamento do ideal de amor construído e desejado.

        É a aproximação real através da fala, do uso do simbólico, que ambos irão transformar esse eu amado construído internamente com o material do passado, desinvestindo as figuras amadas anteriormente para dar lugar a um outro amado e investido de libido, de pulsão de vida.  É preciso este momento de junção, que será reinvestido na ausência ou na decepção do amado.

 

“Não sei de onde, mas sei que sempre te conheci, não sei por que, mas sei que sempre te amei. Absurdo sentir o peito doer quando você não está comigo mais absurdo ainda sentir sua presença dentro de mim.

 

Amar você é assim, a sensação que você sempre esteve aqui ao mesmo tempo em que sua falta sempre senti.

 

Amar você é assim, sonhar em te abraçar como só nós dois sabemos, mas no auge desta ausência sentir seu corpo em mim.

 

Amar você é assim, uma lucidez enlouquecida, uma alucinação realizada, uma falta na completude a mais completa e sincera essência do meu ser abrigada dentro de mim!”

        O que espero e preciso receber do amado é o mesmo que o amado espera e precisa receber, essa simetria não é jamais perfeita, mas é suficiente para manter a angústia de dependência afastada assim como o temor do desamparo.

         O amado e seu amante se manterão vivos  através da capacidade e disposição de na ausência do outro real,  mante-lo vivo dentro do psíquismo, sustentando o investimento da libido,  realizada através dos laços verbais.

        Simetria que propõe uma troca de investimentos libidinais,  entre dois sujeitos que se desejam e reconhecem o valor da junção representada em palavra que  cria um fio condutor, capaz de afastar cada vez mais a vivência de perda do objeto amado infantil, podendo então viver um amor possível que dependerá do investimento de  ambos enquanto seres desejantes e desejados.

        No entanto, falamos de movimento entre dois seres singulares, sujeitos sujeitados a sua estrutura psíquica, o teste da realidade será de tempos em tempos solicitado, uma prova de amor, ou algo assim, desta forma a verdade do sujeito é posta a prova,  assim como a da junção amorosa, oferecendo  a possibilidade de rever suas próprias verdades. 



Trecho extraído do livro: O jeito de Amar de Cada Um - Sonia Pires 

        

 

 

       

 

CORINGA

 



O palhaço tem história.  Não é o acaso que o levou para esse caminho.  

O vilão de Gothan City tem história. Triste, paradoxalmente sintomatizada em riso compulsivo.

Um filme em ritmo compassado, convidando o expectador a compreender os motivos daquele que faz parte dos males da cidade, combatido pelo herói Batman. 

A loucura é o tema central, a justiça perde suas vestes diante dela. Como condenar alguém que não teve condições mínimas de se estruturar?

Do herói que tenta limpar a cidade salvar e defender os oprimidos, para o vilão que se revolta contra a humilhação e sofrimento diário de sua história catastrófica. De um extremo a outro movidos pelo mesmo incomodo, a opressão.

Sofrimento que faz doer desde o início do filme, subjugado, chutado por um grupo de garotos, subjugado e chutado pelos que o contratam como palhaço, e por fim amordaçado por uma mãe dependente e entorpecida pelos programas de TV e fantasias de salvação. A cereja do bolo, a descoberta de fatos sobre sua origem e infância. 

Culpar a quem?

Nossos heróis tinham a quem culpar, afinal existia os bons e os maus muito bem definido.

O filme O coringa, desconstrói a imagem do mal como algo triunfante e perverso, do simples prazer de destruir. Ao contrário, o revela como o retorno do reprimido descontrolada-mente, mas como o nosso herói, ele também vem reagir ao mal que o oprimiu. Alivia-se do pesar destruindo imaginariamente, quem lhe trouxe pesar.

O sintoma, riso compulsivo passa a ser seu novo modo de vida, gargalhar sadicamente diante do gozo poderoso de destruir e subjugar, os que lhe fizeram ou fazem mal, louca e indiscriminada-mente.  

 

 

 

COISA DE GÊNIO

 


A genialidade inevitavelmente necessita do exercício da liberdade. Só um homem livre das amarras de seu tempo, pode transcendê-lo e vislumbrar o inovador, que muitas vezes se revela intocável diante de nós.

Em um breve passeio na mostra Leonardo Da Vinci, 500 anos de um gênio, no Mis Experience, percebi que todas as suas descobertas e obras são inspiradas na escancarada e desconhecida perfeição da natureza que ele tenta explorar, conhecer, e se apropriar incessantemente. 

Toda sua criação sem exceção, inclusive a da mais popular Monalisa, tentam captar e entender a arte misteriosa e sedutora da natureza, que desfila todos os dias diante de nossos olhos. Tenta decifrar a unicidade perfeita de todos os eventos do universo.

Ele diz, existem três tipos de pessoas, as que veem, as que veem quando alguém lhes mostra e as que não veem.

 Definitivamente só os gênios como ele podem transpor a barreira do que é definitivo, aprendido e determinado cultural e socialmente, para ver. No geral nós pobres mortais, sujeitos a todo tipo de crenças e convicções fazemos parte do grupo de pessoas que não veem.  Precisamos das supostas verdades trasmitidas desde que nascemos, para nós apoiamos e nos sentirmos seguros diante da nossa angustiante ignorância.

Ao me deparar, com um olhar quase infantil com a manifestação ali exposta, daquele homem inquieto e angustiado pela sua capacidade e liberdade de ver, refleti que talvez tenhamos momentos geniais como ele, fazendo parte da segunda categoria, os que veem quando lhes mostram, quando algo que nos é apresentado, pode adentrar pela fresta das nossas defesas, e seguras certezas.  No geral um momento fugidio e angustiante, capaz de nos colocar diante da necessidade de rever nossos conceitos, convicções e visão do que nos rodeia cotidianamente.

 Desde o redescobrimento das proporções matemáticas perfeitas do corpo humano no desenho do homem Vitruviano, até a sutileza do sorriso da Monalisa, sua capacidade maior não estava apenas na coragem de quebrar conceitos e regras, mas também no reconhecimento de sua própria ignorância e limitação, associada a seu potencial para não paralisar diante delas, mesmo que angustiantes, ao contrário ele as utilizava como força motriz para sua criação, dizendo:

“A necessidade é a melhor mestra e guia da natureza.

 A necessidade é terna e inventora, o eterno freio e lei da natureza”.

Coisa de gênio!